Em discurso na American
Economic Association, o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco
central americano), Ben Bernanke, discorreu sobre a necessidade de uma
nova regulamentação financeira destinada a impedir a formação de novas
bolhas de ativos. Bernanke dá a entender que a política monetária,
executada mediante o manejo da taxa de juros, é incapaz de
“estabilizar” os mercados financeiros contemporâneos, inclinados às
inovações e seus destemperos. “Uma regulamentação mais forte e uma
supervisão destinada a disciplinar as práticas de emissão de
‘securities’ e de avaliação do risco teriam sido mais efetivas e
cirúrgicas na prevenção da bolha imobiliária do que um aumento
generalizado das taxas de juros.”
Muita gente desconfia, no entanto, que o presidente do Federal Reserve
e suas intenções possam sucumbir diante das resistências e humores dos
senhores da finança. É cada vez maior o contingente de analistas
céticos em relação à disposição dos mercados em aceitar regras
prudenciais e medidas capazes de controlar os impulsos a buscar
inovações capazes de satisfazer o apetite feroz por ganhos maiores.
Nos
anos 90, os democratas de Clinton patrocinaram a extinção das regras
que determinavam a separação das funções entre os bancos comerciais, de
investimento e instituições encarregadas do crédito hipotecário,
imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos anos 30. Figuras
como o assessor econômico do presidente, Lawrence Summers, e o atual
secretário do Tesouro, Timothy Geithner, ocuparam posições importantes
na era Clinton. Estão entre aqueles que – nas palavras de um analista
conceituado – não só “fracassaram em reconhecer as distorções que
levaram à crise, como na verdade, foram responsáveis pela criação de
muitas dessas distorções.”
Já escrevi em outra ocasião que o rol de equívocos promíscuos cometidos
por Geithner e Summers em sua função de autoridades reguladoras é
impressionante. Entre tantas proezas, figura com aplomb a afirmação de
Geithner em 15 de março de 2007: “As inovações financeiras, como os
derivativos, melhoraram a capacidade de avaliar e administrar os
riscos”. Para Geithner “as maiores instituições estavam em geral mais
fortes no que diz respeito aos requerimentos de capital em relação ao
risco”. O palpite infeliz foi pronunciado em 2007 quando a crise
financeira já mostrava os dentes e afiava as garras. Dois dias depois,
entrevistas e gravações mostram que Geithner trabalhou nos bastidores
para reduzir o capital dos bancos.
O
rápido avanço da finança direta e dos mercados de capitais ao promover
a securitização dos créditos abriu espaço para as trampolinagens do
subprime e estimulou inovações perigosas e mal compreendidas pelos
clientes dos bancos ou quase-bancos. Como informa o relatório do
especialista inglês Adair Turner, tais práticas determinaram, entre
outras mazelas, o crescimento desproporcional das dívidas no interior
do sistema financeiro entre bancos comerciais, bancos de investimento e
hedge funds. A crescente interdependência entre os balanços das
instituições, o leitor há de perceber, foi a receita perfeita para a
tragédia sistêmica.
O
ímpeto da concorrência levou o sistema bancário internacional à
incessante violação de todas as normas e à velha e fatal combinação
entre euforia, má avaliação dos créditos, concentração setorial de
ativos e superalavancagem. Para juntar infâmia à injúria, num momento
em que se estreitavam os spreads entre as taxas de papéis “sem risco”
do governo e os rendimentos dos títulos mais arriscados, a
“securitização” evoluiu para a criação de produtos sintéticos, ou seja,
para a emissão de “securities” derivadas de blocos de “securities”.
Na edição de 24 de dezembro, duas jornalistas do “New York Times”
(NYT), Gretchen Morgenson e Louise Story, revelaram ao público em geral
as façanhas praticadas às vésperas do crash financeiro por um dos
bancos de investimento sobreviventes, o Goldman Sachs.
A centenária instituição, dizem os detratores, já apercebida do colapso
da bolha imobiliária, não economizou munição para lançar ao mercado
bilhões de “colateral debt obligations” (CDO) ditos sintéticos. Fundos
de pensão, hedge funds e outros bancos, inclusive estrangeiros,
“carregaram” os instrumentos de crédito sintéticos, classificados
favoravelmente pelas agências de risco. Enquanto isso, sem conhecimento
da clientela, o banco de investimento Goldman Sachs assumia posições
“short”, ou seja, apostava na queda dos papéis. Quando a pirâmide veio
abaixo e os preços despencaram, o banco abiscoitou os ganhos da posição
“short” e deixou o prejuízo para os que acreditaram na qualidade dos
ativos adquiridos.
“A
Securities and Exchange Commission deveria estar interessada em
investigar uma instituição financeira que secretamente decide negociar
um produto sabidamente ‘perdedor’, sem emitir sua verdadeira opinião
para os clientes”, diz o professor Laurece Kotlikoff, da Universidade
de Boston.
Porta-vozes do Goldman Sachs argumentam que os clientes eram
investidores sofisticados e bem informados, dispostos a assumir os
riscos da aposta em papéis mais atraentes, num momento de declínio
generalizado dos rendimentos.
A
crise veio brava. Os desavisados foram pegos no contrapé,
superalavancados, com capital e reservas insuficientes para
contrabalançar as perdas. Já os atilados do Goldman Sachs trataram de
safar a onça quando perceberam que as inovações celebradas por Geithner
e Summers estavam azedando. Um tanto tardiamente os sábios concluíram
que estavam diante de uma “crise sistêmica”, embora nem todos tivessem
provado o gosto amargo da gororoba estragada.
Durante
as décadas de euforia, os críticos da desregulamentação não se cansaram
de deplorar a frouxa supervisão das autoridades americanas incumbidas
de fiscalizar os mercados financeiros. A desídia dos reguladores abriu
as portas para operações fraudulentas de todo o gênero.
Luiz
Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da
Unicamp
Fonte: Valor Econômico